Acontece-me com frequência. Filmes, ou livros, relativamente aos quais
a leitura que deles faço resulta clara e pouco ambígua.
Há bons filmes nesta categoria. E muitos maus. Depois há outros, que fazem
lembrar aquelas caricaturas que vistas de uma forma são uma coisa mas de pernas
para o ar outra completamente diferente. É o caso de Locke, filme recomendado
com entusiasmo por amigos, armadilha sempre perigosa por elevar as expetativas
e, assim, a possível desilusão. Mas não foi o caso. Uma das leituras que fiz do
filme:
Locke é um filme banal. Quer dizer, não é nada banal, é até
muito bom, mas debruça-se sobre a banalidade da vida. Não que a vida seja banal
no sentido de desinteressante. Antes pelo contrário. Porque uma vida banal é
feita de imbanalidades. Como de erros banais, como uma infidelidade (confirmo-o
nos livros, nos filmes, nas telenovelas). "Foi apenas desta vez", confessa
Locke - o personagem principal - à mulher.
Locke, que dito em voz alta remete-nos para a ideia de
prisão, de ficarmos presos aos nossos erros, às nossas ações, circunstância do
homem moral. E que há uma forma moral de enfrentar os erros. É o que Locke
pretende fazer, ao estar presente no nascimento do filho fruto daquela
infidelidade. Para que não faça como o seu pai, que, em circunstâncias
semelhantes, apenas se deu a conhecer quando Locke tinha 22 anos. Porque não se
estará também sempre a tempo de corrigir os erros. "Mais valia que nunca
tivesses aparecido", diz, a certa altura, Locke em voz alta, imaginando o
pai sentado no banco detrás do carro, onde, aliás, toda a ação decorre (no
carro, não especificamente no banco de trás; não é desses filmes). Presos aos
nossos erros mas também aos dos nossos pais, que, de alguma forma, carregamos
connosco.
Qualquer desvio à moral é tramado e pode ter consequências
potencialmente devastadoras. Por mais pequeno que seja. Ou melhor, Locke sabe
que não há desvios pequenos. Como lhe devolve a certa altura a mulher, a
diferença entre não fazer (nunca) e fazer uma só vez é toda a diferença do
mundo. Veja-se como Locke insiste, quase patologicamente, em cumprir o limite
de velocidade na estrada, apesar de o seu mundo estar a desabar e estar
atrasado para o nascimento do filho. No entanto, esta intransigência moral coexiste
com uma enorme humanidade, aquela que permite um olhar compreensivo sobre os
erros dos outros, desde que, no final de contas, o lastro deixado seja
positivo. Uma espécie de tolerância devida aos bons.
O filme passa-se todo no carro, numa viagem de quase uma
hora e meia (a mesma duração do filme), em que ficamos a conhecer, através dos
telefonemas, da linguagem corporal de Locke e dos seus monologos, o drama em
que este se encontra. Isto suscita uma reação curiosa por parte de quem fala do
filme, apressando-se a explicar o feito, aparentemente surpreendente, de podermos
ficar presos a um filme em tão monótono cenário. Mas, na verdade, isso tem
pouco de extraordinário. O turbilhão que é a vida (isso: a morte, o amor, a
família, as escolhas que fazemos, tudo o resto) acontece por regra nos mais entediantes
cenários ou, pelo menos, os do nosso quotidiano, como uma banal viagem de carro.
Não esperam, por norma, por uma visita a Paris ou Buenos Aires.
É, enfim, um filme sobre as coisas que importam na vida, cuja síntese pode ser encontrada na resposta que Locke dá ao ex-patrão: "fuck Chicago".
Sem comentários:
Enviar um comentário