28.4.09

À espera de um sentimento de culpa


Vi recentemente “O Leitor”, de Stephen Daldry. Neste filme, Hanna Schmitz (Kate Winslet) é uma ex-guarda de um campo de concentração (Auschwitz), que se envolve, 13 anos depois do fim da guerra, com um rapaz de 15 anos. Aparentemente, Schmitz vive o seu dia-a-dia sem ponta de remorso pelo seu passado. Esta ideia parece confirmada pela atitude que revela durante o julgamento, onde a sua defesa se resume à invocação de que sacrificou dezenas, centenas de vidas humanas em nome de uma ideia para ela suprema, a da ordem, da ausência do caos. Mas depois há aqueles banhos, que alguns dizem ser uma mera manifestação de um forte sentido de higiene pequeno-burguês, recentemente adquirido pela classe baixa e média alemã. Não consigo, no entanto, de deixar de ver nesses banhos, com contornos obsessivos, uma manifestação do sentimento de culpa subconsciente de Schmitz. Como em "À espera dos Bárbaros”, de Coetzee, onde a figura de um juiz, que vive num lugar pacato na periferia de um império, é confrontada com a prática das maiores crueldades pelas mãos de um carrasco que age, precisamente, em nome do império que o juiz representou durante toda a sua vida. Neste despertar, o juiz questiona-se sobre o que faria aquele carrasco, que executa com aparente desprendimento as mais cruéis tarefas, no regresso a casa para junto da sua família: “lavaria cuidadosamente as mãos antes de lhes tocar”, perguntava-se? E depois há a forma como o juiz parece expiar a culpa pela sua cumplicidade com aquele regime, acolhendo sob a sua protecção uma das vítimas do carrasco, uma jovem bárbara (o inimigo), violentamente agredida e a quem lhe roubaram a visão e assassinaram o pai. Para além de a alimentar, durante meses (ou anos), o juiz passava as noites a lavar as feridas desta jovem. Demorada e minuciosamente. Com persistente obsessão. De alguma forma como Schmitz, pareceu-me. Será talvez uma espécie de recusa minha em aceitar a amoralidade com que Schmitz parece encarar o seu papel na máquina da Solução Final? Ou de um quadro de valores em que de um lado está a ordem (o bem) e do outro o caos (o mal), o que seria visível na reacção facial de asco com que Schmitz reagiu a um cenário em que a consequência do seu acto seria, precisamente, a desordem e o caos? Admito que sim. Mas no fundo, no fundo, no fundo, no fundo, ela tinha uma noção do mal em que estava a participar.

2 comentários:

A.R. disse...

Vou oferecer-te o livro, da autoria de um juiz do tribunal constitucional alemão. É melhor do que o filme, o que geralmente acontece.

Tiago Tibúrcio disse...

E eu que cheguei a questionar a utilidade de ter caixa de comentários... Será muito bem vindo.