15.2.11

Eu temo

“A minha concordância com a petição tem a ver com a necessidade de os órgãos políticos e outras entidades que superintendem os destinos deste País poderem surgir com a maior das transparências relativamente à opinião pública. É um pouco aquela ideia de que quem não deve não teme”, afirmou o juiz, referindo-se à petição do Correio da Manhã a favor da criminalização do enriquecimento ilícito.

“A ideia de quem não deve não teme” aplicada à justiça penal (ainda por cima vinda de um magistrado) é das ideias mais perturbadoras para quem tem uma certa ideia do Estado de direito. Um chavão que contém, em si mesmo, a negação de qualquer direito à reserva da vida privada; que nos desprotege da arbitrariedade do poder do Estado em entrar pela nossa porta adentro; que parece ignorar que os efeitos da justiça não se confinam às paredes do tribunal nem tão pouco aos termos da sentença judicial mas começam a produzir-se desde o início do inquérito (ou, talvez mais apropriadamente, desde a primeira notícia sobre o inquérito). “Quem não deve não teme” é próprio de um sistema que pretende realizar a justiça com base em presunções (aliás, “quem não deve não teme” é, ela mesma, uma presunção). Uma justiça assim, transforma o juíz numa espécie de contabilista. Eu temo. Temo, e se algum dia o Estado e a justiça pretenderem dizer que também devo, gostaria de saber que teriam de demonstrá-lo primeiro.

5 comentários:

A.R. disse...

É um argumento fascista, totalitário. Era o que diziam os que defendiam a PIDE. É o que dizem os que defendem a violência policial.

Anónimo disse...

O que,além do mais, essa tomada de posição mostra,é uma irrestivel tentação de muitos magistrados invadirem o domínio da politica quando o exigível é exactamente o contrário.
EGR.

Anónimo disse...

Nem todos os juízes dizem coisas destas, conferir no Blog, Sine Die e posição de outro Conselheiro, que transcrevo:

O populismo penal em alta
A tentativa de criminalizar a "violência escolar" (o famigerado "bullying") raia o absurdo, mas é bem significativa do nosso tempo: para os problemas sociais difíceis de resolver arranja-se uma "solução penal". Uma solução que nada solucionará, mas deixará de consciência tranquila o legislador... É a tal "legislação simbólica".
Outra área em que a pressão criminalizadora é grande é a da corrupção. Também aqui a criminalização é tida por remédio e panaceia para o mal. Agravar as penas, criar novos ilícitos, é a palavra de ordem. Quem puser dúvidas de eficácia ou de constitucionalidade passa por parvo, anjinho ou até cúmplice dos corruptos...
Agora é o "Correio da Manhã", esse farol do populismo conservador, a arvorar-se em arauto da criminalização do enriquecimento ilícito, lançando uma petição nesse sentido. A confusão e a ignorância na opinião pública, mesmo naquela que deveria mostrar-se mais informada e imune a esses fenómenos populistas, é tão grande que uma iniciativa destas, de inequívoco signo conservador e populista, passa por ser uma meritória iniciativa da "sociedade civil"... Valha-nos deus (mas não vale, já sabemos...).
Saberão eles que é com iniciativas deste tipo que as mais anacrónicas e reaccionárias leis penais foram aprovadas em certos estados dos EUA, como por exemplo a Califórnia (que não é propriamente o Texas...)?

Publicado por Eduardo Maia Costa (19:29)

Tiago Tibúrcio disse...

Claro que não dizem. E acredito que a maioria pense como Eduardo Maia Costa. O problema é esse. É que eu tinha por adquirido que isto era uma espécie de denominador comum da nossa cultura judicial. Mas nos últimos anos temos assistido a um crescendo de posições de magistrados que chocam com esta ideia. A começar nos dirigentes dos sindicatos de ambas as magistraturas. E nestes exemplos de juízes que cavalgam o populismo mais rasteiro do Correio da Manhã (ou que o incitam, não sei bem). Claro que assinam e dão a cara pela petição destacados membros das maais variadas actividades profissionais. E também da política. Mas, pela formação que têm, os magistrados são aqueles que têm a obrigação de senão denunciar, pelo menos não embarcar nestas derivas populistas. Afinal, eles são os garantes últimos das nossas liberdades. E é isso que é perturbador.

Tiago Tibúrcio disse...

Ou, como A.R diz, "É um argumento fascista, totalitário. Era o que diziam os que defendiam a PIDE. É o que dizem os que defendem a violência policial.".

E onde antes via nestas palavras certo exagero de estilo, hoje elas reflectem uma genuína preocupação pelo caminho que se prenuncia.