"Está um dia lindo, o sol brilha e parece que passámos do Inverno directamente para o Verão. Estão 20 graus lá fora, imagine só". Seguem-se descrições da fauna e flora que por estes dias aparece a desabrochar ou a pipilar pelo terraço de Howard Jacobson. Ao telefone a partir da sua casa em Londres, o escritor inglês, 68 anos, está bem disposto apesar de ligeiramente ressacado - "bebi uns copos ontem depois de uma palestra sobre censura". Goza ainda do estado de graça concedido pelo Man Booker Prize, distinção que recebeu em Outubro do ano passado à custa de "A Questão Finkler", livro que saiu na quinta-feira em Portugal. "O prémio fez de mim uma pessoa melhor mas calculo que por pouco tempo. Assim que os efeitos desta vitória se dissiparem vai voltar a amargura". É aproveitar.
Como é que o Booker mudou a sua vida?
Em termos muito práticos, vendo muito mais livros agora do que alguma vez vendi. Por exemplo: a cópia em inglês de "A Questão Finkler" vendeu mais de 400.000 exemplares, um número colossal e que significa que eu em breve terei vendido mais exemplares deste livro do que todos os meus outros 11 romances juntos. É óptimo ter leitores, não tenho de lhe dizer isso a si, certo? E é maravilhoso perceber que há gente a lê-lo no Paquistão e será traduzido para mais de 23 línguas.
Também lhe deve ter aumentado a confiança, certo?
Um alívio enorme. A partir de agora não tenho de me preocupar com ter ou não ter leitores e se posso viver da literatura. Em tempos angustiava-me ter um livro novo, ir a uma livraria e não o encontrar em lado nenhum. Isso agora já não volta a acontecer tão depressa - em Londres vi paredes inteiras forradas a livros meus.
É uma libertação.
E também é uma espécie de ressurreição dos meus livros anteriores. Estão de volta, têm capas novas, estão a ser publicados em mercados onde nunca chegaram, vão ser traduzidos. É como se toda a minha carreira como escritor fosse rejuvenescida. O que também é perigoso.
Perigoso porquê?
Porque me sinto mais jovem do que realmente sou. Esqueço-me de que vou morrer em breve ou de me comportar com a dignidade que se espera de uma pessoa com a minha idade.
E a sua escrita será afectada?
Sou um escritor pessimista. Os meus livros e a minha carreira estão assentes na ideia de que a minha vida é um fracasso, faço a minha arte a partir daí. De agora em diante tenho de fazer o mesmo a partir da sensação de que a minha vida é um sucesso. Se será um problema? Veremos.
A vitória no Booker foi uma surpresa.
Eu também fiquei surpreendido. Naquela noite não achei que fosse ganhar [era a terceira nomeação]. Mas o que mais me surpreendeu foi o "bruaá" de apreço que veio da audiência. Parece que, além de mim, havia mais gente satisfeita.
O "Daily Telegraph" dizia que o Howard era "demasiado divertido para o Booker"?
Muita gente disse isso - eu próprio o disse. Passei anos a ver livros sérios ganhar esse prémio e a achar que aquilo não era para mim. Não percebo esta aversão ao humor na grande literatura, esse afastamento da seriedade. Acho que todos os romances devem ser cómicos.
Como assim?
É para isso que os romances servem. Repare: temos a poesia, temos a tragédia, temos outros géneros para lidar com coisas muito específicas. O romance trata do dia-a-dia, trata da vida. E a nossa vida é bela, feia e absurda. Um romance deve reflectir isso - e deve ter humor.
Acha que o humor é subvalorizado junto da alta cultura?
Sem dúvida. A literatura começou a tornar-se uma coisa tão séria e respeitada que acaba por ser vista quase como uma religião. Inglaterra é um lugar onde a religião organizada está a desaparecer e parece que a arte tomou esse lugar. A literatura deve ser uma coisa solene, silenciosa e a cheirar a igreja - velas, incenso, gente a ler em altares, essas coisas. As pessoas têm medo que, ao abrir um livro com piada, este se lhes rebente nas mãos. E isso é terrível porque em toda a história da literatura há grandes romances que nos fazem rir: "Gargantua e Pantagruel", de Rabelais, "D. Quixote", de Cervantes, são tudo novelas que fazem troça do estado ou da religião. Era para isso que os romances serviam. Mas de há 50 ou 100 anos para cá tudo mudou.
Tem medo de não ser levado a sério?
Não sei como é em Portugal, mas cá os heróis da nossa cultura são comediantes. Adoramo-los. Mas estamos à vontade quando eles estão no seu território - fazem umas piadas e já está. Quando o humor passa para outras áreas aí começam os problemas. As pessoas ficam confusas, não sabem o que pensar, ficam ofendidas. Eu gosto de escrever frases que deixam o leitor na dúvida se é comédia ou tragédia. Gosto de brincar com os leitores: acham que vão rir e eu faço-os chorar, sentem que vem aí uma cena trágica e eu faço-os rir. É uma leitura acrobática.
O humor é considerado por todos uma demonstração de inteligência, porque é que não acontece o mesmo quando chegamos à literatura?
Porque o meio literário está cheio de gente que veio das faculdades e não gosta de ver a inteligência exibida ou desperdiçada no humor. É demasiado rápido para eles. Estão habituados a escrever frases longas e aborrecidas para descrever uma ideia. Eu escrevo para aborrecer e ofender essas pessoas.
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